terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Línguas reais

Sírio Possenti

 Antonio Prata publicou texto curioso na Folha de S. Paulo de 16/01/2013 (Quotidiano). Resumidamente, reclama do fato de que as palavras têm diversos sentidos. Afirma que não precisaria ser assim, já que a combinação de vogais e consoantes é infinita e, portanto, seria possível haver muito mais palavras, o que evitaria o problema.


Defende que os gramáticos deveriam “trazer mais racionalidade à selva da comunicação”. Que, em vez de mexer em tremas e assemelhados, deveriam decretar, por exemplo, que a manga de camisa vai se chamar “lafana”, para evitar confusão com a fruta homônima.  Reclama de vários outros casos, até mesmo de nomes próprios como “Caio”: “toda vez que chamo meu amigo Caio, por exemplo, projeta-se em meu cérebro a imagem deste que voz escreve caindo num bueiro”.

Prata deve saber que suas observações são clássicas, mais velhas do que andar pra frente. Não só por causa da polissemia, mas também por causa de todas as “figuras”, como as metáforas e metonímias. Muito já se criticou a obscuridade das línguas naturais, e também o fato de que há palavras que não correspondem a objetos. Neste domínio, aliás, desenrolou-se talvez o maior debate da Idade Média, entre realistas, nominalistas e conceptualistas.

Muita gente acha que o emprego do mesmo significante para denotar mais de um significado gera confusões. “Manga” é só um exemplo. Prata também cita “trinca”, que pode significar uma pequena rachadura ou um grupo de três. Uma espiada em qualquer dicionário de qualquer língua mostra o grande número de sentidos a que cada palavra está associada. Sem contar as ditas figuras.
Mas, de fato, a propalada confusão quase nunca ocorre. É que, quando se fala, fala-se de um assunto bastante definido em contextos também bastante definidos, o que faz com que frequentemente só um sentido esteja em questão. Os outros ficam como que reprimidos.

Por exemplo, se um potencial comprador analisa uma casa e diz ao vendedor que na parede da cozinha há uma trinca, o vendedor nunca vai pensar que há três pessoas penduradas na parede da cozinha. Se um costureiro ou vendedor de roupas diz algo como “mas veja que manga diferente!”, seria preciso que o potencial comprador fosse bem estranho para entender que o vendedor vai lhe mostrar uma fruta.

(Parêntese: lendo “Les prédiscours”, de Marie-Anne Paveau – o Bottari vai achar que estou mentindo – vi esta questão ser tratada em termos de “competência tópica”, que seria a capacidade dos locutores de perceberem qual é o tema da conversa ou texto. Grice tratou da questão em termos de “pertinência”, na verdade uma tese com maior alcance. Faço esse parêntese para dar contexto ao que vou dizer: alguns dos meus leitores desmentem a tese da competência tópica; qualquer que seja o assunto de que eu trate, eles pensam que estou defendendo o comunismo ou os corruptos. Não sou psicanalista, por isso não opino sobre sua psique, mas acho que deveriam procurar um para tentarem descobrir de que tipo de obsessão se trata).
A tese que defendo – que aprendi a defender -, para a qual há muitos argumentos, é que nunca lemos (ouvimos) simplesmente um texto em uma língua. Lemos (ouvimos) fragmentos situados numa zona discursiva na qual os textos seguem regras específicas – também as da língua, mas não só.

Os textos se materializam uma língua, mas de um modo particular. Num texto de física, a palavra “força” tem um sentido preciso, definido no discurso da física. Não é um problema de português ou de inglês; é um problema – vou dizer a palavra – de fisiquês.
O mesmo vale para todos os casos: ou a interpretação é condicionada pelo tópico (fazer compras, ver futebol etc.) ou pelo campo (ciência, religião, política, direito etc.).
Isso não significa que os textos sejam transparentes.  Significa que há campos nos quais as palavras têm sentido unívoco, porque a univocidade interessa a esses campos. Mas há campos em que a univocidade não interessa; aliás, ela seria contraproducente, e, por isso, ninguém vai querer unificar sentidos. O caso mais claro é o da literatura, mas às religiões essa ambiguidade também importa. O que é a pedra no meio do caminho? E o que são os “pobres de espírito”?

A questão fundamental não é nenhuma das mencionadas. O fundamental é que uma língua “perfeita” não seria funcional. Como distinguir um grupo de falantes de outro se não houvesse diferentes sotaques ou “modos de falar” característicos? Como dar-se conta do estado de espírito de alguém se não houvesse palavrões e pragas? Como fazer humor se não houvesse palavras com mais de um sentido, ou mesmo se não houvesse possibilidade de considerar que uma sequência pode ser uma palavra ou duas?

Eu não gostaria de viver em um mundo em que não fosse possível haver piadas como a seguinte: Um músico diz ao colega que vai ao médico porque está com uma suspeita sobre sua saúde. No dia seguinte, o amigo pergunta? – É grave? – Não, mas é agudo. Ou no qual Millôr não tivesse podido escrever que “a pior dor é a dor de olvido” ou definir “consumo” como ‘o que ainda não foi espremido’.

Prata, aliás, faz uma dessas piadinhas. Budapeste, diz ele, além de “peste”, tem “Buda” no nome. E acrescenta: “’Antes Buda do que Tcheca’, pensa a senhora de mente suja”.
Ele espera, certamente, que o leitor esperto não leia simplesmente “Buda” e “Tcheca”, mas perceba a alusão a duas palavras bastante parecidas. Como obter esse tipo de efeito numa língua como a que ele “defendeu” (brincou de defender?) em seu texto?


http://terramagazine.terra.com.br/blogdosirio/blog/2013/01/24/linguas-reais/


domingo, 13 de janeiro de 2013


Escrever como se fala

Sírio Possenti

A propósito do acordo ortográfico (cuja vigência foi adiada – nem quero discutir!), um leitor da Folha de S. Paulo escreveu (02/02/2013): “Se for para simplificar (alguém tinha sugerido isso), eu incluiria uma regra básica: todo “s” com som de “z” deveria ser grafado como se fala e não como se escreve. Assim, todos escreveriam mais corretamente, pois bastaria seguir a pronúncia e não e etimologia”.

Escreveríamos com “z” palavras como “caza” (casa), além dos casos (cazos?) do tipo “zebra” (zebra). 
Provavelmente, ele incluiria escrever “ezemplo” (exemplo), eu penso. A regra produziria uma simplificação incrível. Supondo que aceite extensões, que o caso mencionado seja só um exemplo, escreveríamos com “s” palavras como “saco” (saco), “naseu” (nasceu), “nasa” (nasça), “casado” (caçado / cassado), “sego” (cego), eseto (exceto), “felis” (feliz) – ninguém pronuncia “feliz”.

Mas “feliz” já oferece um problema. Na verdade, dois. Qual seria a vantagem de escrever “felis” com “s”, se o plural é “felizes”? Talvez o leitor admitisse levar em conta a morfologia, excluindo ainda a etimologia. Esse é o primeiro problema, que resolveria também casos como “papeu” (papel), que poderia continuar escrito com “l”, já que existem palavras como “papelaria / papelucho” etc., nas quais o “l” volta.

Mas como resolver o outro problema de “feliz”, já que muita gente pronuncia “filiz” (como pronuncia “mininu” / “leiti” etc.)? Haveria uma campanha para uniformizar as pronúncias? E quem fala “leitchi”, como escreveria “leite”? Deveria pronunciar “leite”? Como o leitor não explicitou se a simplificação se aplicaria apenas aos “s” com som de “z” ou a todos os casos similares, fica-se na dúvida sobre a extensão da proposta (como se escreveria a sílaba final de “extensão”?). Se fosse mais audacioso, poderia propor que acabasse também a dupla grafia x / ch (escreveríamos sempre com x, digamos, “xoxo / xeque (ambos) coxa /  xuxu / xapéu etc.). “Tóxico” se escreveria “tócsico” e “táxi”, “tácsi”?  “Sexo” seria “secso” ou “séquisso”, conforme a pronúncia?

Da mesma forma, passaria  a haver grafias alternativas como “Ricifi” em alguns lugares, “Recife” em outros e até “Récife/i” ainda em outros? E escreveríamos “festa”, com “é” (acentuado), já que na primeira sílaba ocorre uma vogal aberta, que teria que ser diferenciada do “e” de “feira”, fechado?


E como escrever “campo” e “dando” (e todas as sílabas similares à primeira dessas palavras)? Com uma vogal seguida de nasal ou com uma vogal com til? (“campo” ou “cãpo”?). Atualmente, escrevemos “mandaram” e “mandarão” (apesar de a pronúncia da sílaba final ser a mesma, havendo apenas diferença de tonicidade). A escrita simplificada seria a mesma para as duas formas? E se adotássemos “mandaram”, também escreveríamos “lam” (lã)? Lembremos que se escreve “quem”, “alguém”, palavras cuja sílaba final é um ditongo, e não uma vogal seguida de consoante nasal…

Nordestinos como o ex-vice-presidente Marco Maciel (um sujeito culto à beça), que fala “puque u pudê”, escreveria assim mesmo essa sequência ou escreveria “porque o poder”?
Diante de tantos casos a serem decididos (de que os mencionados são pequena amostra), não é muito mais óbvio pensar que, qualquer que seja o sistema adotado, o problema não está nele, mas no tempo dedicado à escrita, começando pela escola, sem que a questão se restrinja a ela?

Finalmente, qual seria o problema de aceitar (ou fechar um pouco o olho) certos casos de grafia divergente, dando a eles apenas a importância que têm, ou seja, considerando que a compreensão de um texto é menos prejudicada por problemas de grafia do que por outros, bem mais complexos e, em geral, mais graves?

Fonte: Blog do Sírio
http://terramagazine.terra.com.br/blogdosirio/blog/2013/01/10/escrever-como-se-fala/

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

E o Latim não morreu!

Carla Mª Cunha e Gisélia Evangelista de Sousa

Oriundo da região do Lácio, em Roma, o latim deu origem às línguas românicas, dentre as quais o português - "A última flor do Lácio, inculta e bela", nas palavras do poeta Olavo Bilac . Atualmente, é considerado por muitos uma língua morta. Contrariando tal opinião, pensemos em algumas palavras e expressões latinas, principalmente as utilizadas nos produtos de consumo, que não somente continuam vivas, mas também fazem parte do nosso cotidiano.

Há quem diga que o latim é uma língua morta e que ninguém mais fala a lingua mater. A priori tal informação procede, visto que a "falecida" não é idioma oficial de nenhum país, com exceção do Vaticano. Porém, se prestarmos um pouco de atenção às marcas de muitos produtos que consumimos, veremos que ela não foi sepultada por completo, pelo contrarius, permanece viva e faz parte do nosso curriculum vitae. Então, mostraremos aqui que, em meio ao turbilhão de anglicismo, o marketing conseguiu ressuscitar o latim.

Para fazer um retrato em lato sensu desta realidade, gostaríamos de escrever um artigo sui generis, mas, como é necessário ser magistra e regina no assunto, ter conhecimento sobre o tema é condição sine qua non para um texto analítico mais profundo. Isto não temos, portanto, ficaremos apenas com os produtos de consumo, resultado da pesquisa empírica nos supermercados. Se você, como nós, é um curioso do assunto, então: Vade mecum! Vamos às compras!

Basta passarmos às vistas pelas prateleiras de lojas e mercados que iremos nos deparar com o latim ali, "vivinho da selva", ou melhor, da silva, estampado nas embalagens de diversos produtos. Você duvida? Então nos acompanhe. Na seção de doces, com certeza, encontraremos o chocolate Bis e obviamente perceberemos o apelo publicitário de que "quem come um pede Bis", numa clara menção ao seu significado: duas vezes. No entanto, até então, você desconhecia a origem deste vocábulo e não tinha relacionado tal marca com o tema em pauta. Agora você já sabe. Esta simples palavrinha é latina.

Ainda nesta seção podemos dizer que só as guloseimas nos deixam com um gostinho de "quero mais" e com a sensação de "tudo que é Bono dura pouco!". Para aliviar a culpa pelas calorias adquiridas, passemos para a próxima área do mercado. Se você está meio fora de forma e almeja um Corpus Magnus (magnífico!) o latim aparece para te oferecer uma plus vita, comendo o saudável pão homônimo.

Para os que querem fazer um pouco de caritatis e querem ajudar as obras daquela que foi a irmã "doce" da Bahia, quer dizer, irmã Dulce, têm os produtos Dulce Natura. Já na seção de bebidas, se você não aprecia aquelas com um teor de álcool mais elevado, certamente, não levará para casa o conhaque Domus, mas aquele que é fã de uma cervejinha gelada e não faz questão da "primeiro lugar" da mídia, já deve ter bebido a primeira latinizada: Primus.

Indo para a seção de higiene pessoal tem, para obter uma pele iluminada com muito "glamour" na hora do banho, o sabonete Lux Luxo, aliás, se quisermos iluminar o ambiente temos os fósforos Fiat Lux idem. Os produtos da natureza que ajudam a cuidar da beleza ganham um charme maior quando o latim se apresenta. Então que tal a linha cosmética Natura? Percebeu quanto latim sai da nossa boca?

Em suma, cremos que esta pequena scriptura demonstra e prova com termos ipsis litteris que o latim está cada dia mais vivus em nossas vitae. No entanto, nessa sociedade consumista, para a nossa "letícia", o que seria optimum era um dia encontrar todos esses produtos gratis.


http://linguaportuguesa.uol.com.br/linguaportuguesa/gramatica-ortografia/36/artigo264767-1.asp

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012


Sobre livros acadêmicos

Aldo Bizzocchi

Quando fazia meu doutorado, nos anos 90, precisei usar como corpus amostral da minha pesquisa textos acadêmicos de diversas áreas, tanto das ciências naturais quanto das humanas (eu estava pesquisando a etimologia dos termos científicos). E, para tornar a amostra mais abrangente e fidedigna, decidi utilizar tanto artigos quanto livros. Para minha surpresa, descobri que, nas ciências naturais, não se publicam mais livros científicos desde a Segunda Guerra Mundial. A tendência desde então é publicar "papers" em periódicos especializados, de preferência os chamados "top A", isto é, os de maior prestígio e impacto no meio científico, como as revistas "Science" e "Nature".

Enquanto isso, só nas humanas se manteve o hábito de publicar livros acadêmicos, em geral ensaios filosóficos em que um tema é esmiuçado em tal profundidade que ultrapassa os parcos limites de um artigo (de 15 a 20 páginas, no máximo). Ou então coletâneas de artigos, em que um organizador reúne as contribuições de vários colegas acerca de um tema.

O que se nota é que os atuais "papers" das ciências exatas e biológicas versam sobre descobertas pontuais, como a identificação de um novo vírus ou a apresentação de uma nova técnica, coisas que podem ser ditas em até 20 páginas. Já uma nova teoria sobre a vida ou o universo, produto da somatória de muitos artigos especializados, costuma resultar em livros de popularização, redigidos em estilo jornalístico e disponíveis ao público em geral em qualquer livraria. O mesmo vale para coletâneas de artigos de divulgação científica.

Em resumo, o livro propriamente acadêmico, dirigido à comunidade universitária, acabou restrito às ciências humanas e às humanidades (não confundir umas com as outras, pois humanidades não são ciências). Mas por que nessas áreas ainda se publicam livros em vez de seguir a tendência da comunicação direta, sucinta e objetiva dos "papers"? Em primeiro lugar, porque o discurso das humanidades, por sua própria natureza, não é direto, sucinto e objetivo. Discorrer profundamente sobre uma questão é algo que dificilmente se faz em poucas páginas. Além disso, em áreas como o Direito, por exemplo, a prolixidade e a eloquência fazem parte da própria lógica discursiva. Ou pelo menos do estilo do "métier".

Outra razão para a existência de livros em humanas é que boa parte deles são coletâneas de comunicações apresentadas em congressos. Mas para isso já não existem os anais dos eventos? Por que então publicar novamente em livro? Em alguns casos, o livro acaba substituindo os anais. Ou melhor, os anais acabam publicados em forma de livro. Em outros casos, publicam-se os anais e o livro. E como a publicação de livro conta mais pontos nas avaliações institucionais das universidades do que a de artigo, essa estratégia acaba "engordando" os currículos dos autores.

Decerto há livros científicos em todas as áreas, e não só os lançados antes da Segunda Guerra, mas nas ciências naturais o mais comum são os tratados, que têm um caráter mais didático do que propriamente de pesquisa. Tanto que os tratados de anatomia são mais consumidos por estudantes de Medicina do que por pesquisadores. A razão é simples: um tratado traz o que já se sabe sobre o assunto, aquilo que se ensina em sala de aula. Já uma obra de pesquisa apresenta o novo, o recém-descoberto. Como muitos trabalhos em ciências humanas ainda têm um forte viés filosófico, o esquema introdução/fundamentação/material/método/conclusões, típico das ciências experimentais, não cabe bem nessas ciências, frequentemente muito mais teóricas do que práticas.

Quanto à publicação de obras de difusão em ciências humanas, esbarra-se em dois empecilhos. Primeiro, o viés filosófico e o estilo retórico de que falei acima tornam esses livros pouco atraentes ao público leigo. Em segundo lugar, a curiosidade popular sempre recaiu sobre questões mais "existenciais", como a origem da vida ou do universo, do que sobre temas sociais, políticos ou econômicos, tidos como "chatos" pela maioria dos cidadãos comuns.

Fonte:








domingo, 9 de dezembro de 2012


Títulos que não entregam

Como os nomes de obras literárias podem guardar segredos preciosos sobre sua narrativa

Braulio Tavares

Um título deve atrair o leitor, mas não revelar demais sobre o texto. Todo mundo deve se lembrar das piadas sobre os títulos que certos filmes de mistério teriam recebido em Portugal: Psicose (1960), de Hitchcock, seria, lá, O Filho que Era a Mãe; o que conhecemos como Um Corpo que Cai (1958) teria sido intitulado A Mulher que Viveu Duas Vezes; e O Sol por Testemunha (1960) de René Clément, teria recebido o nome revelador de O Cadáver estava Embaixo do Barco, entregando de bandeja a última cena do filme. Claro que tudo isso é brincadeira, mas um título não pode entregar revelações antecipadas de sua trama.

Quem pega na livraria ou na biblioteca obras como A Morte de Artémio Cruz (Carlos Fuentes, 1962) ou A Morte de Ivan Ilitch (Leon Tolstoi, 1886) já sabe que o protagonista provavelmente morrerá mesmo, e que é essa morte que dá o tom do romance.  O mesmo vale para Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis, 1881) e para Crônica de uma Morte Anunciada (Gabriel García Márquez, 1981), em que a probabilidade ou quase certeza da morte do protagonista já vem anunciada desde a capa. O que significa, em última análise, que esta não é a informação do livro - a morte aqui não é objeto de mistério nem de suspense, é um ponto de partida para discutir outras coisas, e anunciá-la desde logo ajuda o leitor a aceitá-la como premissa.


No meu trabalho de antologista (publiquei seis antologias de contos fantásticos nos últimos nove anos, e tenho outras em preparo) preciso ler centenas de contos para, primeiro, construir um repertório e, segundo, montar cada antologia de acordo com o que ela pede. Isto implica ler, além dos títulos indicados pela crítica e da obra dos autores que já conheço, incontáveis listagens de contos obscuros para adivinhar, pelo título, o seu conteúdo. Claro que as referências não nos chegam só pelos títulos, mas um dos prazeres desse trabalho é descobrir contos de autores esquecidos, perdidos em revistas, coletâneas, volumes empoeirados de biblioteca. O que nos leva então (na impossibilidade de ler todos aqueles textos) a preferir este, e não os demais?


Inequívoco
Um título eficaz é aquele que identifica o texto de maneira inequívoca, ao fotografar com clareza o tema principal: "A Biblioteca de Babel" (Jorge Luis Borges, 1941), "Lúcia McCartney" (Rubem Fonseca, 1967), "Olhos de Cão Azul" (García Márquez, 1974), "A célebre rã saltadora do condado de Calaveras" (Mark Twain, 1865), "Bola de sebo" (Guy de Maupassant, 1880), "Malagueta, Perus e Bacanaço" (João Antonio, 1963)... Todos esses são títulos indissoluvelmente ligados aos textos. Não deve haver, em toda a literatura universal, dois contos com títulos assim.


Por outra, seria mais fácil esquecer ou confundir títulos como "Desenredo" (1967) ou "Sequência" (1962) de Guimarães Rosa, "Contrapartidas" (James Joyce, 1914), "História comum" (Machado de Assis, 1883) "Os fatos da vida" (Somerset Maugham, 1939)... Títulos que revelam pouco do conteúdo da história e ficam meio translúcidos, sem dizer nada. Revelam tão pouco que, sozinhos, não as evocam a quem já os tenha lido um dia. O conto de Machado, por exemplo, seria imediatamente reconhecido se se intitulasse "Eu, um alfinete".


Entre a possibilidade de revelar muito e a de revelar pouco, obras que envolvem algum mistério ou surpresa, como contos policiais ou de terror, têm que recorrer a uma variedade de soluções. Uma delas é indicar no título o ponto de partida do problema, não o desfecho: "A carta roubada" (Edgar Allan Poe, 1844) e "Um problema de xadrez" (Agatha Christie, 1924) dão indicação suficiente sobre o mistério, sem nem chegar perto da solução. 


Fato secundário
Outro recurso é destacar no título um elemento que, no final acaba se revelando de importância secundária na trama, mas que tem vividez suficiente para dar ao conto uma marca.  É o caso de "O escaravelho de ouro" (1843) ou "O barril de Amontillado" (1846), de Poe, histórias em que esses objetos aparecem como mero instrumento ou pretexto para algo mais complexo, e que o título não deixa transparecer. Um clássico do conto de mistério criminal, "As mãos do sr. Ottermole" (Thomas Burke, 1931), a história de um estrangulador londrino, consegue a façanha de revelar o nome do assassino no próprio título e manter até o penúltimo parágrafo o mistério sobre sua identidade.


Uma solução criativa é conceber um título que de certa forma não faça parte da história, que não indique um local, um personagem ou um elemento da história em si, mas introduza uma espécie de comentário externo que venha dialogar com o enredo e, sem desvendá-lo, possa enriquecê-lo de nuances. Alguns clássicos do conto de terror têm títulos assim, como "A volta do parafuso" (Henry James, 1898), "Oh, apite e eu virei até você, meu rapaz" (M. R. James, 1904), "Onde seu fogo jamais se apaga" (May Sinclair, 1922): títulos marcantes, cuja relação com a história é indireta e só pode ser avaliada após a leitura.


Exercício
Imaginemos um enredo-chavão: um carro quebra numa estrada rural à noite, o protagonista precisa pedir comida e dormida numa casa de gente estranha. No fim, fica-se sabendo que todos ali são fantasmas. Intitular o conto "A Casa dos Fantasmas" seria destruir o um por cento de surpresa que pudesse restar ao leitor. O uso de um nome próprio ("O Solar dos Queiroz") daria um pouco de clima e tornaria a situação minimamente mais realista. "O Candelabro Azul" pode se valer de algum detalhe ameaçador que o protagonista percebe. "A Escada do Porão" pode atrair a atenção para a existência de um segredo. Cada título muda um pouco o ângulo pelo qual o leitor entra no texto.

Fonte: Revista Língua Portuguesa
http://revistalingua.uol.com.br/textos/81/titulos-que-nao-entregam-262407-1.asp

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Reescrever é sobreviver

Como refazer os próprios textos, para além da correção gramatical, pode nos ajudar a desenvolver as possibilidades da língua e aguçar nosso senso crítico.

Chico Viana

Reescrever é um componente fundamental do processo da escrita. A razão disso é que nenhum texto ganha forma da primeira vez em que as palavras são lançadas no papel. Reescreve-se para chegar ao que se quer dizer. Com isso, desenvolve-se o senso crítico e se aprende mais sobre as possibilidades da língua. A reescrita é imprescindível no aprendizado da redação. Para Eliane Donaio Ruiz, o professor deve incorporar ao ensino essa prática "absolutamente comum entre os escritores (...), seja simultaneamente ao ato da escrita, seja posteriormente a ele" (de Como Corrigir Redações na Escola, Editora Contexto, p. 24). Se ela não acontece, a correção se limita à exposição dos problemas, sem que o aluno seja convocado a compreendê-los e os resolver. 


A refeitura faz com que o estudante se fixe não apenas no resultado obtido, mas também nas transformações que deve efetuar. Isso o ajuda a perceber que a escrita é um processo. Escrever primeiras versões ruins é condição para que, posteriormente, se chegue a um resultado satisfatório. Quem não aprende a reconhecer as falhas - suas e dos outros - não terá como as evitar. Os alunos com o tempo se convencem disso e passam a temer menos os erros, pois sabem que eles são um ponto de partida para o acerto. 

Ao reescrever, aprendem a desconfiar do binômio certo/errado, bom/mau. Convencem-se de que toda redação pode ser aperfeiçoada; o precário material que produzem nas primeiras versões é a matéria-prima que resultará em bons textos. Segundo Daniel Cassany, escrever "é como atirar pedras - a gente não sabe com certeza os efeitos que causará quando a pedra sair da mão" (de Oficina de Textos, Artmed, p. 91). A reescrita ajuda a conhecer a trajetória da pedra, evitando-se o risco de que ela caia na cabeça de quem a jogou.

Refazer

Reescrever não é revisar. A revisão, grosso modo, se concentra em problemas gramaticais. Por meio dela corrigem-se tropeços na ortografia, na regência, na concordância, na sintaxe dos modos e tempos do verbo. A reescrita vai além: implica mudar ou cortar palavras, reordenar períodos, dar nova disposição aos parágrafos, a fim de que o texto atinja os objetivos a que se propõe.  A refeitura visa aprimorar a competência discursiva do aluno. Não escreve bem apenas quem não comete erros ortográficos e se sai bem em concordância e regência. Um texto pode ser correto nesses aspectos e não cumprir a sua função. O estudo da norma só tem sentido se conduz à produção de textos, sobretudo escritos, que ajudem o indivíduo a atuar na sociedade. Quem não tem voz não tem vez. 

Entendimento

A reescrita em sala de aula deve dar mais ênfase à comunicação do que ao estilo (no sentido literário). Não se está, afinal de contas, lidando com escritores, e sim com uma clientela que deseja aperfeiçoar sua capacidade redacional. O que se persegue é a clareza, a transparência de sentido. O aluno deve estar consciente de que reescreve, sobretudo, para se fazer entender. 


O caminho para chegar a isso é combater os problemas que dificultam o ato de ler. Stephen Kock afirma que "o coração da legibilidade é sua relação com o leitor. A clareza é um elemento essencial dessa relação" (Oficina de Escritores, Martins Fontes, p. 227).  Entre os fatores que comprometem a leitura estão as falhas coesivas, a quebra do paralelismo, o excesso de palavras, a redundância de ideias, as enumerações extensas e as imprecisões vocabulares.


Coesão
As falhas de coesão são as mais graves, pois afetam a coerência e por vezes obscurecem totalmente o sentido. Mesmo quando não chegam a esse extremo, desconcertam o leitor por promoverem quebra da unidade estrutural. É o que ocorre na passagem abaixo (retirada, como todas as passagens deste artigo, de redações produzidas em sala de aula):


"Diante do comodismo e da certeza de impunidade, em vez de seguirmos as normas, a cultura do famoso jeitinho brasileiro vem se difundindo e tornou-se algo louvável".


Na refeitura procurou-se mostrar ao estudante que a manutenção do sujeito "nós", no último período, daria unidade ao conjunto e facilitaria o trabalho do leitor:



"Diante do comodismo e da certeza de impunidade, em vez de seguirmos as normas,difundimos o famoso jeitinho brasileiro e o tornamos louvável". 


Problema semelhante ocorre neste trecho:


"Além da falta de coerência desse projeto na questão do Estado interferir na forma de educar,ele não esclarece quais serão os critérios usados para associar a punição ao nível de gravidade das palavras".


Observe que o termo "projeto" (sobre a interferência do Estado na educação dos filhos) não se correlaciona com o pronome "ele". Isso determina uma quebra na estrutura. Recupera-se a unidade estrutural apresentando "o projeto" como sujeito da primeira oração:    


"Além de o projeto ser incoerente, por permitir que o Estado interfira na educação dos filhos,ele não esclarece quais os critérios para associar a punição ao nível de gravidade das palavras". 



As rupturas no paralelismo resultam da falta de simetria formal entre os elementos coordenados. A ausência de correlação sintática enfeia o texto mesmo que não haja comprometimento do sentido, como se vê nesta passagem: 


"Talvez o preconceito se explique por se achar que pobre é indefeso, explorado e, conforme diz Lya Luft, que estão todos contra ele". 



Ao coordenar os predicativos, o aluno usou dois adjetivos ("indefeso", "explorado") e uma oração. Alertado sobre o problema, tratou de encontrar um termo morfologicamente correlacionado ao conjunto:

"Talvez o preconceito se explique por se achar que pobre é indefesoexplorado e, conforme diz Lya Luft, hostilizado por todos".


Quando há palavras em excesso, os vilões são os adjetivos, advérbios e preciosismos


"Os pais escandinavos não demonstram fisicamente amor pelos seus filhos. Eles defendem que é muito mais importante valorizá-los. No entanto nesses países existe alta taxa de suicídios apesar de tanta valorização. Certamente os pais não percebem que dentro dos filhos há um grande abismo chamado solidão e que nada substitui um abraço afetivo em horas de dor e tristeza".

Essencial
Os termos em itálico, de fato, nada acrescentam ao pensamento do aluno. Retirá-los dá maior peso aos substantivos e verbos, destacando o essencial da informação: 

"Os pais escandinavos não demonstram amor pelos filhos. Defendem que é mais importante valorizá-los. No entanto, nos países escandinavos ocorre uma alta taxa de suicídios. Certamente os pais não percebem que os filhos se sentem solitários e que nada substitui um abraço em horas de tristeza".
Outro fator que desencoraja a leitura é a repetição de ideias. Ela faz o discurso circular em torno de um mesmo ponto e compromete a progressão, conforme se vê nesta passagem de uma redação sobre a força de vontade:    

"Tudo que se quer consegue-se, basta apenas focalizar os pensamentos naquilo que mais se deseja, pois quando a atenção está voltada para uma coisa só, é quase impossível não consegui-la". 
As longas enumerações também indispõem à leitura. Ler é antecipar os conteúdos desconhecidos a partir dos conhecidos; a diversidade dos termos que aparecem numa enumeração torna difícil essa tarefa: 

"A expansão desordenada da agricultura, o desmatamento, a poluição do solo e das águas, o tráfico de animais silvestres, a exploração abusiva dos recursos naturais estão extinguindo espécies numa velocidade muito maior do que a natureza tem de fazer a reposição".
Uma forma de melhorar a legibilidade desse trecho é antepor aos termos enumerados uma expressão genérica e ligá-la imediatamente ao predicado: 

"Vários fatores concorrem hoje para extinguir as espécies numa velocidade maior do a que a natureza tem para as repor. Entre eles estão o desmatamento, a poluição do solo e das águas, o tráfico de animais silvestres, a exploração abusiva dos recursos naturais".
Problema semelhante a esse é o das longas intercalações. Na passagem abaixo, a presença de três orações entre o sujeito e o predicado faz esquecer de quem (ou do quê) se fala no início do período: 

"O capitalismo moderno, que se caracteriza pela enorme concentração de renda e estimula a globalização, pois é preciso estender o consumo a todo o mundo, senão o capital não se multiplica, cria nas cidades grandes regiões com muitos marginalizados". 

Ligação
Na reescrita, contornou-se o problema ligando o sujeito ao predicado e transformando o período em dois:

"O capitalismo moderno cria nas grandes cidades grandes regiões com muitos marginalizados. Ele se caracteriza pela enorme concentração de renda e estimula a globalização, pois é preciso estender o consumo a todo o mundo, senão o capital não se multiplica".  
Também devem ser refeitas as frases longas, ou "centopeicas". Nesse tipo de frase não há propriamente falha de coesão; as ideias estão bem articuladas, mas a falta de pontos ou pontos e vírgulas dificulta a captação da mensagem: 

"Nossos políticos dedicam-se a criar escolas e mais escolas, abrir concursos para preencher dezenas de vagas com professores vindos de cursos universitários às vezes ruins, às vezes inadequados à matéria que vão lecionar e dão-se por satisfeitos, pois, para eles, ensino de qualidade não é algo a ser pensado e elaborado, nem ao menos importado pronto do exterior, mas é simplesmente um conceito vazio a ser usado em véspera de eleição".
A divisão do parágrafo em no mínimo três períodos daria um melhor ritmo ao texto e facilitaria ao leitor relacionar suas partes: 

"Nossos políticos dedicam-se a criar escolas e mais escolas. Abrem concursos para preencher dezenas de vagas com professores vindos de cursos universitários às vezes ruins, às vezes inadequados à matéria que vão lecionar. Apesar disso, dão-se por satisfeitos, pois, para eles, ensino de qualidade não é algo a ser pensado e elaborado, nem ao menos importado pronto do exterior; é um conceito vazio a ser usado em véspera de eleição".
No plano semântico, a refeitura procura sobretudo resolver os problemas de adequação vocabular, já que a escolha da palavra exata é fundamental para a compreensão do que se quer dizer. Numa passagem como: "Vivemos uma época de substituição de valores como ética e respeito por outros menos substanciosos", é provável que o aluno não tenha a exata percepção do que seja "substanciosos". Esse adjetivo não se aplica a "valor". Mais adequado seria empregar "nobres", "elevados" ou termo semelhante.   

Adequação
A reescrita em sala de aula é primeiro "autotextual". Com a ajuda do professor e dos colegas, o aluno reescreve os próprios textos. Numa etapa posterior, ele trabalha os textos de outros. Esse é o momento de transformar gêneros, estilos, registros de linguagem, visando fazer uma ponte entre o que se escreve na escola e fora dela. O objetivo é mostrar ao estudante que produzir textos é uma forma de interagir socialmente. Ele não reescreve apenas para contornar problemas de linguagem e expressão, e sim, conforme observa Sírio Possenti, "para tornar o texto mais adequado a uma certa finalidade, a um certo tipo de leitor, a um certo gênero".

FONTE:
http://revistalingua.uol.com.br/textos/76/reescrever-e-sobreviver-250903-1.asp



quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Cada coisa em seu lugar


É preciso mostrar ao aluno que escrever com atenção aos tópicos ajuda a preservar a unidade estrutural e temática dos textos

A boa prosa deve apresentar ordem e progressão. Ordenar é garantir uma sequência em que se vá com clareza do primeiro ao último parágrafo. Para conseguir isso é preciso relacionar os componentes textuais de modo a assegurar a continuidade da forma e do conteúdo - se é que se pode, a rigor, separar esses dois planos linguísticos. A continuidade formal, que se obtém basicamente por meio dos elementos coesivos, promove a coerência e tende a conferir unidade ao texto. Ela contudo não basta para torná-lo claro ao leitor. À exigência de uma rigorosa coesão associa-se a necessidade de uma boa arquitetura. O texto funciona quando sentenças e parágrafos estão dispostos numa ordem tal, que nada compromete a legibilidade. O que não se lê fácil está mal escrito.

Para tornar legível o texto é preciso rigor na construção das partes. Espera-se da sentença que seja completa (não são raros nas redações os fragmentos de frases). Do parágrafo, espera-se que tenha unidade, apresente-se suficientemente desenvolvido e se articule com o parágrafo seguinte de modo a promover a progressão. A harmonização entre sentenças e parágrafos concorre para assegurar ao texto unidade temática. Atender a ela é fundamental para evitar o maior risco que o aluno pode correr: fugir ao tema e ter sua redação anulada. A melhor maneira de evitar isso é entender o que vêm a ser os tópicos e estruturar o texto de acordo com eles.

A importância da hierarquia nos textos

O que é um tópico? É o componente mais importante de uma sentença, de um parágrafo ou de todo o conjunto textual. Daí se falar em tópico sentencial, tópico frasal e tópico discursivo. Escrever de olho neles ajuda a hierarquizar os elementos do texto.

Tópico discursivo

Comecemos pelo último - o tópico discursivo. Ele indica o assunto e deve constar na introdução. A boa introdução é aquela em que se informa o leitor sobre aquilo de que se vai falar. Redações em que não se faz isso, ou se faz mal, tendem a apresentar problemas de unidade e se tornam um desafio maior para quem não tem experiência com a escrita.  

A introdução falha em dois casos: ou quando constitui o que em linguagem jornalística se chama nariz de cera; ou quando representa uma resposta direta ao questionamento proposto nos textos de suporte. O nariz de cera é um preâmbulo que muitas vezes nada tem a ver com o tema (evitamos aqui discutir a diferença entre tema e assunto, irrelevante para o que nos interessa). Aparece ora como uma ponderação subjetiva, ora como uma digressão sobre o ser humano, os males do capitalismo, a difícil caminhada do homem na Terra etc. etc. Redigir isso é perda de tempo. A resposta direta ocorre quando o aluno não se preocupa em introduzir o texto, iniciando-o pelo meio através de expressões como "de fato", "é verdade", "não há dúvida de que" etc. Isso contraria a velha máxima de Aristóteles, segundo a qual a introdução é o que não admite nada antes, e deixa o leitor sem saber de que trata a redação (é claro que os membros da banca sabem de que ela trata, mas um texto deve dar a qualquer leitor todas as informações necessárias para interpretá-lo).

Tópico sentencial

O tópico sentencial, como o nome diz, é a palavra ou expressão de que basicamente se fala numa sentença. Vê-se, pela definição, que ele coincide com o sujeito. A manutenção desse tópico em posição inicial ajuda a compor parágrafos claros, entre outras razões pela referência do verbo a um mesmo termo sintático. Na passagem abaixo não se observou esse princípio:

"A ONG Nova Vida trata a espiritualidade dos viciados com muita atenção, o que, segundo os jovens, os auxilia a enfrentar os desafios após a saída do centro. Além disso, frequentemente são oferecidas aos internos aulas a fim de que eles estejam preparados para o mercado de trabalho."

Seria mais fácil ler o trecho se o tópico "a ONG Nova Vida" continuasse como sujeito no início do segundo período. É dele, afinal de contas, que ainda se fala. No entanto o aluno preferiu apassivar a construção e dar como sujeito "aulas" ("aulas são oferecidas"). Por que não dizer que a ONG oferece aulas? Quebras como essa, comuns nas redações, geram falhas de continuidade e desnorteiam o leitor.

Tópico frasal

O tópico frasal, por fim, é a sentença (ou sentenças) em que se encontra a ideia principal do parágrafo. Geralmente também aparece no início e se constitui numa declaração a ser justificada, desenvolvida, amplificada. Grande parte dos problemas de paragrafação decorre de um desenvolvimento insuficiente do tópico frasal. Ou de o aluno limitar o parágrafo a um período. Neste caso o tópico aparece como uma cabeça sem corpo, o que impede o texto de andar. Articular bem o parágrafo é fundamental. Quando isso não ocorre, o texto não apresenta uma progressão coerente. É o caso destes parágrafos com que um aluno iniciou uma redação sobre a violência contra as mulheres, tendo como referência o caso Bruno:

"A violência contra as mulheres vem tomando grandes proporções no Brasil. Diariamente são registrados casos que aterrorizam o país e muitos deles adquirem grande repercussão na mídia. Um exemplo é o caso da modelo Elisa Samudio.

"O goleiro Bruno foi acusado do desaparecimento e suposto assassinato da sua ex-namorada Elisa Samudio, e no momento encontra-se preso como o principal suspeito do crime. Após procurar a juíza Ana Paula de Freitas com um pedido de proteção, declarando sofrer ameaças e agressões do goleiro, a modelo desapareceu."

Concatenação

Aí existem, na verdade, dois começos de redação. Um dos fatores que reforça a descontinuidade é a forma como o aluno se refere à ex-namorada do goleiro, que parece não ter ainda sido citada.
Haveria concatenação se "a modelo Elisa Samudio", representada por um pronome ou qualquer outro termo coesivo, iniciasse o segundo parágrafo. Isso permitiria inclusive uma melhor ordenação dos eventos, já que Elisa poderia aparecer também como sujeito do segundo período.

Eis o referido parágrafo redigido de outra forma: 

"Ela foi supostamente assassinada pelo goleiro Bruno, que se encontra preso por ser também suspeito de haver-lhe escondido o corpo. Elisa desapareceu dias após ter procurado a juíza Ana Paula de Freitas com um pedido de proteção por sofrer ameaças e agressões do jogador."
Transformações como essa mostram que a manutenção do tópico concorre para dar clareza e unidade ao parágrafo.

FONTE: Revista Língua Portuguesa
http://revistalingua.uol.com.br/textos/0/cada-coisa-em-seu-lugar-253973-1.asp


terça-feira, 24 de julho de 2012

Mercado de livro (ou livro de mercado)



O best-seller dentro e fora da sala de aula

Bianca Borgianni

O que é best-seller?

Em termos literais, chamamos de best-sellers os livros que figuram ou figuraram na lista dos mais vendidos das livrarias. Essa definição não é suficiente, pois pode levantar questões do tipo: “mas então Machado de Assis escreveu best-sellers? Saramago escreveu best-sellers? Flaubert escreveu best-sellers? Porque todos esses livros um dia figuraram na lista dos mais vendidos...”. Para reduzirmos um pouco nosso campo de pesquisa, vamos deixar de lado os livros clássicos que um dia foram os mais vendidos (pois esta questão demandaria uma análise sócio-histórica bastante aprofundada) e nos focar naqueles livros que primeiro nos vem à mente quando alguém fala que leu um best-seller: tais como Harry Potter, a saga Crepúsculo, O Código da Vinci, Paulo Coelho etc. Livros nos quais o processo de escrita está intimamente vinculado ao sucesso de vendas, elaborados com o objetivo de atingir um grande público e, portanto, produtos da indústria cultural.

Essa ideia de um autor ser reconhecido pela quantidade de livros que vende não existe desde sempre. Antes do século XVIII, os escritores produziam sob o regime de mecenato, ou seja, eram financiados por alguém abastado, um mecenas que bancava os custos da publicação e garantia uma vida confortável para o artista produzir livremente. Este tipo de relação não exigia que o autor escrevesse livros que agradassem a maioria das pessoas, pois ele não dependia do sucesso de vendas para sobreviver. No entanto, a partir do século XVIII, o mercado editorial cresce substancialmente e os escritores passam a depender da venda de seus livros para se manterem: “Resta ao escritor uma escolha entre a busca pela emancipação artística, mantendo a autenticidade de seus escritos, contudo sem o retorno financeiro, ou a submissão às exigências de um vasto público leitor consumidor para garantir a independência financeira” (CORTINA; SILVA).

O que é indústria cultural?

Para fazermos uma crítica mais aprofundada aos best-sellers e a concepção de arte que os rege, é importante compreendermos o conceito de indústria cultural, formulado pelos pensadores alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer e utilizado pela primeira vez no livro Dialética do Esclarecimento, publicado em 1947.

“(...)em todos os seus ramos (da indústria cultural- tais como cinema, rádio, literatura) fazem-se, mais ou menos segundo um plano, produtos adaptadosa o consumo das massas e que em grande medida determinam esse consumo.”

A indústria cultural é o sistema que, segundo Adorno, rege a produção cultural voltada para as massas. Esses produtos são planejados para atingir um grande número de pessoas, e, portanto, tem como principal objetivo servir aos interesses do mercado. Os best-sellers, como o próprio nome já diz, são, acima de livros pertencentes a algum gênero, livros que vendem muito e são escritos para vender muito.

Tomemos como exemplo a recente onda de livros de magia e personagens sobrenaturais que tomou a prateleira dos livros infanto-juvenis. Não é por acaso que numa mesma década livros como Harry Potter, Percy Jackson, saga Crepúsculo e Fronteiras do Universo tenham sido escritos e vorazmente consumidos pelo público jovem. Também não é por acaso que não tenhamos citado aqui nem um único título, por assim dizer, mas apenas os nomes das séries (que chegam a conter sete livros), e também não é uma grande coincidência que todos eles tenham sido adaptados para o cinema. Podemos perceber uma produção massiva que possui grande potencial de adaptação para outras linguagens como o cinema, e que, além de tudo, alimenta a indústria de videogames, material escolar e brinquedos. Apesar de parecer que o jovem escolheu gostar disso, por todos os lados ele enfrenta uma forte pressão para gostar disso. Esse estímulo enorme da indústria cultural à produção de livros deste nicho temático é o que determina o gosto dos jovens por esses assuntos, e não o contrário, como se pode pensar.

Talvez o primeiro Harry Potter não tivesse a pretensão de vender tanto, agradar a tanta gente, virar filme e se tornar mania, mas assim que foi possível perceber o interesse de uma parcela de consumidores por esse sub-gênero da literatura, todos os outros volumes que sucederam o primeiro já foram escritos com contrato fechado com a produtora de filmes.

“As massas não são a medida, mas a ideologia da indústria cultural, ainda que esta última não possa existir sem a elas se adaptar”(ADORNO)

Ler ou não ler? (eis a questão)

A subordinação do best-seller aos interesses do mercado pode criar em alguns leitores um sentimento de profunda repulsa e reações do tipo: “prefiro nem ler, isto não é arte, não chega nem aos pés de um Machado de Assis”. Talvez em termos de valor literário e erudição, o best-seller ofereça, de fato, motivos de sobra para ser renegado por aqueles que se interessam por literatura, mas será que dentro do processo de formação de leitores ele não pode ter um papel importante?

Uma das principais funções do professor é conseguir realizar propostas em sala de aula que sejam capazes de dialogar com o repertório dos alunos, para isso é preciso captar de alguma forma quais são seus interesses, se gostam de ler e, principalmente, que tipo de leitura os agrada. Vamos imaginar uma situação em que um professor da oitava série precise introduzir textos do Machado de Assis para sua classe. Ele faz uma roda de conversa e descobre que menos da metade da classe gosta de ler; descobre ainda que, dentre os que gostam, a grande maioria inclui best-sellers e livros que não são clássicos entre os seus prediletos. O que este professor pode fazer? Se ele passar um Machado de Assis agora, corre o risco de afastar aqueles jovens leitores que estão começando a entender do que gostam, se ele passar um best-seller, corre o risco de viciar a leitura dos alunos em uma literatura comercial de pouco valor artístico. O que é mais importante, então? Ler qualquer coisa ou ler determinado tipo de literatura? É claro que não há uma única resposta para esta questão, mas algo que deve ser levado sempre em conta é a realidade dos seus alunos. O professor não pode negar todo o universo cultural deles (seja ele inteiramente formado por produtos da indústria cultural ou não) e propor uma leitura absolutamente estranha a todos, que vai se apresentar a eles como uma espécie de desafio intransponível para o qual ainda não estão preparados. Esta situação requer do professor uma mediação capaz de fornecer ao aluno ferramentas que o possibilitem a escolher por si mesmo o que quer ler. Cabe ao professor a difícil tarefa de ajudar os estudantes na libertadora transição da leitura de livros pouco complexos e conservadores em sua forma para livros questionadores da realidade, nos quais a elaboração estética da linguagem atribui às palavras a deliciosa capacidade de surpreender o leitor, colocando em xeque seus valores e sua concepção de mundo.

Existem várias teorias acerca da leitura de best-sellers na escola, uma delas chama-se “teoria do degrau” e supõe que a leitura desses livros pode ser parte de uma “escada qualitativa”, o princípio é mais ou menos o seguinte: se você gostar de ler best-sellers, será mais fácil procurar ler outras coisas, pois você já possui o principal atributo do bom leitor, o gosto pela leitura.

Acontece que o cuidado na hora de passar um best-seller na aula de literatura deve ser redobrado se o professor tiver a pretensão de desenvolver a consciência crítica dos alunos. A análise de um best-seller não pode ignorar a presença de lugares-comuns temáticos e não pode esquecer de analisar os livros formalmente, pois é aí que mora a principal diferença entre estes livros e os clássicos: os best-sellers, voltados sempre para o consumo do grande público, não são escritos para o leitor desfrutar de uma organização diferenciada da linguagem, são escritos com o propósito de não oferecer nenhum tipo de resistência ao leitor que possa atrapalhar sua compreensão e, consequentemente, sua vendagem. Se o professor decidir mediar esta difícil tarefa, é de suma importância que questione com os alunos o porquê de aquele livro ser um best-seller, bem como a sua semelhança com outros best-sellers e as suas diferenças com os clássicos.

Talvez renegação desses livros em sala de aula não seja uma boa estratégia para incentivar os alunos a ampliarem seu repertório artístico, o risco de essa forma consolidar uma imagem de que “livro chato (clássico) a gente lê na escola e livro legal (best-seller) a gente lê em casa” é muito grande. O professor de literatura precisa se esforçar para diminuir a distância entre o aluno e os livros clássicos, mostrando que eles não são “difíceis de ler”, escolher trabalhar um best-seller pode ser positivo neste sentido de avaliar coletivamente o que é um livro considerado “fácil e prazeroso de ler” e quais são os motivos disso. É preciso preparar o aluno com as ferramentas necessárias para ler o que quiser. Todos obviamente podem ler best-sellers, mas um leitor melhor preparado consegue escolher qual é o livro que melhor dá conta da sua subjetividade. Quando podemos de fato escolher o que queremos (e precisamos) ler, o livro adquire outra função além da fruição estética: a profunda ampliação das nossas possibilidades expressivas.

Bibliografia

CORTINA; SILVA. “Um olhar sobre a leitura de best-seller”. Revista Travessias, nº 02.
ADORNO, Theodor. “Resumé sobre indústria cultural”. Originalmente este ensaio foi uma conferência radiofônica proferida por Adorno em 1963. Publicado pela primeira em 1967.
ADORNO, Theodor. “Indústria cultural e sociedade”. Ed. Paz e Terra, 2009; 5ª edição.