Línguas reais
Sírio Possenti
Antonio Prata publicou texto curioso na Folha de S. Paulo de 16/01/2013 (Quotidiano). Resumidamente, reclama do fato de que as palavras têm diversos sentidos. Afirma que não precisaria ser assim, já que a combinação de vogais e consoantes é infinita e, portanto, seria possível haver muito mais palavras, o que evitaria o problema.
Sírio Possenti
Antonio Prata publicou texto curioso na Folha de S. Paulo de 16/01/2013 (Quotidiano). Resumidamente, reclama do fato de que as palavras têm diversos sentidos. Afirma que não precisaria ser assim, já que a combinação de vogais e consoantes é infinita e, portanto, seria possível haver muito mais palavras, o que evitaria o problema.
Defende que os
gramáticos deveriam “trazer mais racionalidade à selva da comunicação”. Que, em
vez de mexer em tremas e assemelhados, deveriam decretar, por exemplo, que a
manga de camisa vai se chamar “lafana”, para evitar confusão com a fruta
homônima. Reclama de vários outros
casos, até mesmo de nomes próprios como “Caio”: “toda vez que chamo meu amigo
Caio, por exemplo, projeta-se em meu cérebro a imagem deste que voz escreve
caindo num bueiro”.
Prata deve saber que
suas observações são clássicas, mais velhas do que andar pra frente. Não só por
causa da polissemia, mas também por causa de todas as “figuras”, como as
metáforas e metonímias. Muito já se criticou a obscuridade das línguas
naturais, e também o fato de que há palavras que não correspondem a objetos.
Neste domínio, aliás, desenrolou-se talvez o maior debate da Idade Média, entre
realistas, nominalistas e conceptualistas.
Muita gente acha que
o emprego do mesmo significante para denotar mais de um significado gera
confusões. “Manga” é só um exemplo. Prata também cita “trinca”, que pode
significar uma pequena rachadura ou um grupo de três. Uma espiada em qualquer
dicionário de qualquer língua mostra o grande número de sentidos a que cada
palavra está associada. Sem contar as ditas figuras.
Mas, de fato, a
propalada confusão quase nunca ocorre. É que, quando se fala, fala-se de um
assunto bastante definido em contextos também bastante definidos, o que faz com
que frequentemente só um sentido esteja em questão. Os outros ficam como que
reprimidos.
Por exemplo, se um
potencial comprador analisa uma casa e diz ao vendedor que na parede da cozinha
há uma trinca, o vendedor nunca vai pensar que há três pessoas penduradas na
parede da cozinha. Se um costureiro ou vendedor de roupas diz algo como “mas
veja que manga diferente!”, seria preciso que o potencial comprador fosse bem
estranho para entender que o vendedor vai lhe mostrar uma fruta.
(Parêntese: lendo
“Les prédiscours”, de Marie-Anne Paveau – o Bottari vai achar que estou
mentindo – vi esta questão ser tratada em termos de “competência tópica”, que
seria a capacidade dos locutores de perceberem qual é o tema da conversa ou
texto. Grice tratou da questão em termos de “pertinência”, na verdade uma tese
com maior alcance. Faço esse parêntese para dar contexto ao que vou dizer:
alguns dos meus leitores desmentem a tese da competência tópica; qualquer que
seja o assunto de que eu trate, eles pensam que estou defendendo o comunismo ou
os corruptos. Não sou psicanalista, por isso não opino sobre sua psique, mas
acho que deveriam procurar um para tentarem descobrir de que tipo de obsessão
se trata).
A tese que defendo –
que aprendi a defender -, para a qual há muitos argumentos, é que nunca lemos
(ouvimos) simplesmente um texto em uma língua. Lemos (ouvimos) fragmentos
situados numa zona discursiva na qual os textos seguem regras específicas –
também as da língua, mas não só.
Os textos se
materializam uma língua, mas de um modo particular. Num texto de física, a
palavra “força” tem um sentido preciso, definido no discurso da física. Não é
um problema de português ou de inglês; é um problema – vou dizer a palavra – de
fisiquês.
O mesmo vale para
todos os casos: ou a interpretação é condicionada pelo tópico (fazer compras,
ver futebol etc.) ou pelo campo (ciência, religião, política, direito etc.).
Isso não significa
que os textos sejam transparentes.
Significa que há campos nos quais as palavras têm sentido unívoco,
porque a univocidade interessa a esses campos. Mas há campos em que a
univocidade não interessa; aliás, ela seria contraproducente, e, por isso,
ninguém vai querer unificar sentidos. O caso mais claro é o da literatura, mas
às religiões essa ambiguidade também importa. O que é a pedra no meio do
caminho? E o que são os “pobres de espírito”?
A questão
fundamental não é nenhuma das mencionadas. O fundamental é que uma língua
“perfeita” não seria funcional. Como distinguir um grupo de falantes de outro
se não houvesse diferentes sotaques ou “modos de falar” característicos? Como
dar-se conta do estado de espírito de alguém se não houvesse palavrões e
pragas? Como fazer humor se não houvesse palavras com mais de um sentido, ou
mesmo se não houvesse possibilidade de considerar que uma sequência pode ser
uma palavra ou duas?
Eu não gostaria de
viver em um mundo em que não fosse possível haver piadas como a seguinte: Um
músico diz ao colega que vai ao médico porque está com uma suspeita sobre sua
saúde. No dia seguinte, o amigo pergunta? – É grave? – Não, mas é agudo. Ou no
qual Millôr não tivesse podido escrever que “a pior dor é a dor de olvido” ou
definir “consumo” como ‘o que ainda não foi espremido’.
Prata, aliás, faz
uma dessas piadinhas. Budapeste, diz ele, além de “peste”, tem “Buda” no nome.
E acrescenta: “’Antes Buda do que Tcheca’, pensa a senhora de mente suja”.
Ele espera,
certamente, que o leitor esperto não leia simplesmente “Buda” e “Tcheca”, mas
perceba a alusão a duas palavras bastante parecidas. Como obter esse tipo de
efeito numa língua como a que ele “defendeu” (brincou de defender?) em seu
texto?
http://terramagazine.terra.com.br/blogdosirio/blog/2013/01/24/linguas-reais/