Escrever como se fala
Sírio Possenti
A propósito do acordo ortográfico (cuja vigência foi adiada –
nem quero discutir!), um leitor da Folha de S. Paulo escreveu (02/02/2013): “Se
for para simplificar (alguém tinha sugerido isso), eu incluiria uma regra
básica: todo “s” com som de “z” deveria ser grafado como se fala e não como se
escreve. Assim, todos escreveriam mais corretamente, pois bastaria seguir a
pronúncia e não e etimologia”.
Escreveríamos com “z” palavras como “caza” (casa), além dos
casos (cazos?) do tipo “zebra” (zebra).
Provavelmente, ele incluiria escrever
“ezemplo” (exemplo), eu penso. A regra produziria uma simplificação incrível. Supondo que
aceite extensões, que o caso mencionado seja só um exemplo, escreveríamos com
“s” palavras como “saco” (saco), “naseu” (nasceu), “nasa” (nasça), “casado”
(caçado / cassado), “sego” (cego), eseto (exceto), “felis” (feliz) – ninguém
pronuncia “feliz”.
Mas “feliz” já oferece um problema. Na verdade, dois. Qual
seria a vantagem de escrever “felis” com “s”, se o plural é “felizes”? Talvez o
leitor admitisse levar em conta a morfologia, excluindo ainda a etimologia.
Esse é o primeiro problema, que resolveria também casos como “papeu” (papel),
que poderia continuar escrito com “l”, já que existem palavras como “papelaria
/ papelucho” etc., nas quais o “l” volta.
Mas como resolver o outro problema de “feliz”, já que muita
gente pronuncia “filiz” (como pronuncia “mininu” / “leiti” etc.)? Haveria uma
campanha para uniformizar as pronúncias? E quem fala “leitchi”, como escreveria
“leite”? Deveria pronunciar “leite”? Como o leitor não explicitou se a simplificação se aplicaria
apenas aos “s” com som de “z” ou a todos os casos similares, fica-se na dúvida
sobre a extensão da proposta (como se escreveria a sílaba final de
“extensão”?). Se fosse mais audacioso, poderia propor que acabasse também a
dupla grafia x / ch (escreveríamos sempre com x, digamos, “xoxo / xeque (ambos)
coxa / xuxu / xapéu etc.). “Tóxico” se
escreveria “tócsico” e “táxi”, “tácsi”?
“Sexo” seria “secso” ou “séquisso”, conforme a pronúncia?
Da mesma forma, passaria
a haver grafias alternativas como “Ricifi” em alguns lugares, “Recife”
em outros e até “Récife/i” ainda em outros? E escreveríamos “festa”, com “é”
(acentuado), já que na primeira sílaba ocorre uma vogal aberta, que teria que
ser diferenciada do “e” de “feira”, fechado?
E como escrever “campo” e “dando” (e todas as sílabas
similares à primeira dessas palavras)? Com uma vogal seguida de nasal ou com
uma vogal com til? (“campo” ou “cãpo”?). Atualmente, escrevemos “mandaram” e
“mandarão” (apesar de a pronúncia da sílaba final ser a mesma, havendo apenas
diferença de tonicidade). A escrita simplificada seria a mesma para as duas
formas? E se adotássemos “mandaram”, também escreveríamos “lam” (lã)? Lembremos
que se escreve “quem”, “alguém”, palavras cuja sílaba final é um ditongo, e não
uma vogal seguida de consoante nasal…
Nordestinos como o
ex-vice-presidente Marco Maciel (um sujeito culto à beça), que fala “puque u
pudê”, escreveria assim mesmo essa sequência ou escreveria “porque o poder”?
Diante de tantos casos a serem decididos (de que os
mencionados são pequena amostra), não é muito mais óbvio pensar que, qualquer
que seja o sistema adotado, o problema não está nele, mas no tempo dedicado à
escrita, começando pela escola, sem que a questão se restrinja a ela?
Finalmente, qual seria o problema de aceitar (ou fechar um
pouco o olho) certos casos de grafia divergente, dando a eles apenas a
importância que têm, ou seja, considerando que a compreensão de um texto é
menos prejudicada por problemas de grafia do que por outros, bem mais complexos
e, em geral, mais graves?
Fonte: Blog do Sírio
http://terramagazine.terra.com.br/blogdosirio/blog/2013/01/10/escrever-como-se-fala/
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