sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Reescrever é sobreviver

Como refazer os próprios textos, para além da correção gramatical, pode nos ajudar a desenvolver as possibilidades da língua e aguçar nosso senso crítico.

Chico Viana

Reescrever é um componente fundamental do processo da escrita. A razão disso é que nenhum texto ganha forma da primeira vez em que as palavras são lançadas no papel. Reescreve-se para chegar ao que se quer dizer. Com isso, desenvolve-se o senso crítico e se aprende mais sobre as possibilidades da língua. A reescrita é imprescindível no aprendizado da redação. Para Eliane Donaio Ruiz, o professor deve incorporar ao ensino essa prática "absolutamente comum entre os escritores (...), seja simultaneamente ao ato da escrita, seja posteriormente a ele" (de Como Corrigir Redações na Escola, Editora Contexto, p. 24). Se ela não acontece, a correção se limita à exposição dos problemas, sem que o aluno seja convocado a compreendê-los e os resolver. 


A refeitura faz com que o estudante se fixe não apenas no resultado obtido, mas também nas transformações que deve efetuar. Isso o ajuda a perceber que a escrita é um processo. Escrever primeiras versões ruins é condição para que, posteriormente, se chegue a um resultado satisfatório. Quem não aprende a reconhecer as falhas - suas e dos outros - não terá como as evitar. Os alunos com o tempo se convencem disso e passam a temer menos os erros, pois sabem que eles são um ponto de partida para o acerto. 

Ao reescrever, aprendem a desconfiar do binômio certo/errado, bom/mau. Convencem-se de que toda redação pode ser aperfeiçoada; o precário material que produzem nas primeiras versões é a matéria-prima que resultará em bons textos. Segundo Daniel Cassany, escrever "é como atirar pedras - a gente não sabe com certeza os efeitos que causará quando a pedra sair da mão" (de Oficina de Textos, Artmed, p. 91). A reescrita ajuda a conhecer a trajetória da pedra, evitando-se o risco de que ela caia na cabeça de quem a jogou.

Refazer

Reescrever não é revisar. A revisão, grosso modo, se concentra em problemas gramaticais. Por meio dela corrigem-se tropeços na ortografia, na regência, na concordância, na sintaxe dos modos e tempos do verbo. A reescrita vai além: implica mudar ou cortar palavras, reordenar períodos, dar nova disposição aos parágrafos, a fim de que o texto atinja os objetivos a que se propõe.  A refeitura visa aprimorar a competência discursiva do aluno. Não escreve bem apenas quem não comete erros ortográficos e se sai bem em concordância e regência. Um texto pode ser correto nesses aspectos e não cumprir a sua função. O estudo da norma só tem sentido se conduz à produção de textos, sobretudo escritos, que ajudem o indivíduo a atuar na sociedade. Quem não tem voz não tem vez. 

Entendimento

A reescrita em sala de aula deve dar mais ênfase à comunicação do que ao estilo (no sentido literário). Não se está, afinal de contas, lidando com escritores, e sim com uma clientela que deseja aperfeiçoar sua capacidade redacional. O que se persegue é a clareza, a transparência de sentido. O aluno deve estar consciente de que reescreve, sobretudo, para se fazer entender. 


O caminho para chegar a isso é combater os problemas que dificultam o ato de ler. Stephen Kock afirma que "o coração da legibilidade é sua relação com o leitor. A clareza é um elemento essencial dessa relação" (Oficina de Escritores, Martins Fontes, p. 227).  Entre os fatores que comprometem a leitura estão as falhas coesivas, a quebra do paralelismo, o excesso de palavras, a redundância de ideias, as enumerações extensas e as imprecisões vocabulares.


Coesão
As falhas de coesão são as mais graves, pois afetam a coerência e por vezes obscurecem totalmente o sentido. Mesmo quando não chegam a esse extremo, desconcertam o leitor por promoverem quebra da unidade estrutural. É o que ocorre na passagem abaixo (retirada, como todas as passagens deste artigo, de redações produzidas em sala de aula):


"Diante do comodismo e da certeza de impunidade, em vez de seguirmos as normas, a cultura do famoso jeitinho brasileiro vem se difundindo e tornou-se algo louvável".


Na refeitura procurou-se mostrar ao estudante que a manutenção do sujeito "nós", no último período, daria unidade ao conjunto e facilitaria o trabalho do leitor:



"Diante do comodismo e da certeza de impunidade, em vez de seguirmos as normas,difundimos o famoso jeitinho brasileiro e o tornamos louvável". 


Problema semelhante ocorre neste trecho:


"Além da falta de coerência desse projeto na questão do Estado interferir na forma de educar,ele não esclarece quais serão os critérios usados para associar a punição ao nível de gravidade das palavras".


Observe que o termo "projeto" (sobre a interferência do Estado na educação dos filhos) não se correlaciona com o pronome "ele". Isso determina uma quebra na estrutura. Recupera-se a unidade estrutural apresentando "o projeto" como sujeito da primeira oração:    


"Além de o projeto ser incoerente, por permitir que o Estado interfira na educação dos filhos,ele não esclarece quais os critérios para associar a punição ao nível de gravidade das palavras". 



As rupturas no paralelismo resultam da falta de simetria formal entre os elementos coordenados. A ausência de correlação sintática enfeia o texto mesmo que não haja comprometimento do sentido, como se vê nesta passagem: 


"Talvez o preconceito se explique por se achar que pobre é indefeso, explorado e, conforme diz Lya Luft, que estão todos contra ele". 



Ao coordenar os predicativos, o aluno usou dois adjetivos ("indefeso", "explorado") e uma oração. Alertado sobre o problema, tratou de encontrar um termo morfologicamente correlacionado ao conjunto:

"Talvez o preconceito se explique por se achar que pobre é indefesoexplorado e, conforme diz Lya Luft, hostilizado por todos".


Quando há palavras em excesso, os vilões são os adjetivos, advérbios e preciosismos


"Os pais escandinavos não demonstram fisicamente amor pelos seus filhos. Eles defendem que é muito mais importante valorizá-los. No entanto nesses países existe alta taxa de suicídios apesar de tanta valorização. Certamente os pais não percebem que dentro dos filhos há um grande abismo chamado solidão e que nada substitui um abraço afetivo em horas de dor e tristeza".

Essencial
Os termos em itálico, de fato, nada acrescentam ao pensamento do aluno. Retirá-los dá maior peso aos substantivos e verbos, destacando o essencial da informação: 

"Os pais escandinavos não demonstram amor pelos filhos. Defendem que é mais importante valorizá-los. No entanto, nos países escandinavos ocorre uma alta taxa de suicídios. Certamente os pais não percebem que os filhos se sentem solitários e que nada substitui um abraço em horas de tristeza".
Outro fator que desencoraja a leitura é a repetição de ideias. Ela faz o discurso circular em torno de um mesmo ponto e compromete a progressão, conforme se vê nesta passagem de uma redação sobre a força de vontade:    

"Tudo que se quer consegue-se, basta apenas focalizar os pensamentos naquilo que mais se deseja, pois quando a atenção está voltada para uma coisa só, é quase impossível não consegui-la". 
As longas enumerações também indispõem à leitura. Ler é antecipar os conteúdos desconhecidos a partir dos conhecidos; a diversidade dos termos que aparecem numa enumeração torna difícil essa tarefa: 

"A expansão desordenada da agricultura, o desmatamento, a poluição do solo e das águas, o tráfico de animais silvestres, a exploração abusiva dos recursos naturais estão extinguindo espécies numa velocidade muito maior do que a natureza tem de fazer a reposição".
Uma forma de melhorar a legibilidade desse trecho é antepor aos termos enumerados uma expressão genérica e ligá-la imediatamente ao predicado: 

"Vários fatores concorrem hoje para extinguir as espécies numa velocidade maior do a que a natureza tem para as repor. Entre eles estão o desmatamento, a poluição do solo e das águas, o tráfico de animais silvestres, a exploração abusiva dos recursos naturais".
Problema semelhante a esse é o das longas intercalações. Na passagem abaixo, a presença de três orações entre o sujeito e o predicado faz esquecer de quem (ou do quê) se fala no início do período: 

"O capitalismo moderno, que se caracteriza pela enorme concentração de renda e estimula a globalização, pois é preciso estender o consumo a todo o mundo, senão o capital não se multiplica, cria nas cidades grandes regiões com muitos marginalizados". 

Ligação
Na reescrita, contornou-se o problema ligando o sujeito ao predicado e transformando o período em dois:

"O capitalismo moderno cria nas grandes cidades grandes regiões com muitos marginalizados. Ele se caracteriza pela enorme concentração de renda e estimula a globalização, pois é preciso estender o consumo a todo o mundo, senão o capital não se multiplica".  
Também devem ser refeitas as frases longas, ou "centopeicas". Nesse tipo de frase não há propriamente falha de coesão; as ideias estão bem articuladas, mas a falta de pontos ou pontos e vírgulas dificulta a captação da mensagem: 

"Nossos políticos dedicam-se a criar escolas e mais escolas, abrir concursos para preencher dezenas de vagas com professores vindos de cursos universitários às vezes ruins, às vezes inadequados à matéria que vão lecionar e dão-se por satisfeitos, pois, para eles, ensino de qualidade não é algo a ser pensado e elaborado, nem ao menos importado pronto do exterior, mas é simplesmente um conceito vazio a ser usado em véspera de eleição".
A divisão do parágrafo em no mínimo três períodos daria um melhor ritmo ao texto e facilitaria ao leitor relacionar suas partes: 

"Nossos políticos dedicam-se a criar escolas e mais escolas. Abrem concursos para preencher dezenas de vagas com professores vindos de cursos universitários às vezes ruins, às vezes inadequados à matéria que vão lecionar. Apesar disso, dão-se por satisfeitos, pois, para eles, ensino de qualidade não é algo a ser pensado e elaborado, nem ao menos importado pronto do exterior; é um conceito vazio a ser usado em véspera de eleição".
No plano semântico, a refeitura procura sobretudo resolver os problemas de adequação vocabular, já que a escolha da palavra exata é fundamental para a compreensão do que se quer dizer. Numa passagem como: "Vivemos uma época de substituição de valores como ética e respeito por outros menos substanciosos", é provável que o aluno não tenha a exata percepção do que seja "substanciosos". Esse adjetivo não se aplica a "valor". Mais adequado seria empregar "nobres", "elevados" ou termo semelhante.   

Adequação
A reescrita em sala de aula é primeiro "autotextual". Com a ajuda do professor e dos colegas, o aluno reescreve os próprios textos. Numa etapa posterior, ele trabalha os textos de outros. Esse é o momento de transformar gêneros, estilos, registros de linguagem, visando fazer uma ponte entre o que se escreve na escola e fora dela. O objetivo é mostrar ao estudante que produzir textos é uma forma de interagir socialmente. Ele não reescreve apenas para contornar problemas de linguagem e expressão, e sim, conforme observa Sírio Possenti, "para tornar o texto mais adequado a uma certa finalidade, a um certo tipo de leitor, a um certo gênero".

FONTE:
http://revistalingua.uol.com.br/textos/76/reescrever-e-sobreviver-250903-1.asp



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